IP-LDN estudos e pesquisas

- Trabalhos de pesquisa nas diversas áreas das ciências humanas e outras.

16 de fev. de 2017

JESUS E A DOUTRINA PÓS-MODERNA

Autor: Luiz Dias do Nascimento Filho
Trabalho apresentado na Jornada Teológica do STM/02/2017

             RESUMO
A proposta deste trabalho sobre Jesus e a doutrina pós-moderna, tem a preocupação de investigar, de modo bem sintético, as formas como Jesus foi pensado na filosofia da igreja primitiva, na idade média, idade namoderna e como Ele é pensado hoje na filosofia pós-moderna. Ao levar em consideração estes aspectos, surge o interesse de uma pesquisa focada na possibilidade da existência de um Jesus que ultrapassa a realidade de uma doutrina única, que dá lugar a um Jesus plural, um Jesus das diversidades religiosas e culturais segundo a necessidade de cada tempo. Este caminho parece oferecer condições de conhecer concepções de crenças fundadas em valores tradicionais de verdade e a ruptura com essa verdade. Sendo assim, propõe-se neste trabalho trazer para o debate a questão da concepção teológica de um Jesus único, absoluto e de um Jesus pós-moderno onde estará em discussão a questão da unicidade e da diversidade doutrinal de Jesus. Para isto, tomamos como base o texto de Gianni Vattimo e outras leituras auxiliares, buscando entender os pressupostos do pensamento forte (tradicional) e do pensamento fraco (pós-moderno). O interesse por esta discussão se dá pelo fato de que a igreja primitiva valorizava a doutrina única de Jesus, enquanto a pós-modernidade reivindica a relativização dessa doutrina em função da pluralidade cultural.

Palavras-chaves
Pensamento forte, pensamento fraco, doutrina, Jesus, moderno, pós-moderno,


Introdução
O interesse por esta pesquisa se deu pelo fato de querer entender como Jesus foi primeiramente pensado na igreja primitiva e como ele é pensado hoje a partir de tantas mudanças, não só no campo religioso, mas na evolução da ciência, da tecnologia, da comunicação, das grandes narrativas iluministas, no campo da história, da teologia e outras vertentes que se aplicaram a pensar sobre Jesus. A outra questão que nos leva a valorizar esta pesquisa é a possibilidade de se saber como Jesus está sendo pensado diante da realidade objetiva da produção material que busca a satisfação dos desejos dos indivíduos, produzindo experiências de natureza objetiva, ou seja, experiência de aquisição e satisfação de coisas. Um fenômeno produzido por imagens objetivas, ou seja, imagens que se colocam diante do homem, dando a ele representações divinas, representações que se realizam entre o concreto e o abstrato, uma zona intermediária que concilia matemática e experiência, leis, fatos e espiritualidade, reivindicando uma nova concepção de fé e de utilização da fé em Jesus.

JESUS E A QUESTÃO DA DOUTRINA
         Iniciarei meu texto com a declaração de que a nossa sociedade moderna se envolveu numa dimensão de crise sem precedente. Estamos mergulhados dentro de múltiplas crises: crise de valores, da ética, da verdade, da justiça, da religião e do homem como indivíduo. Momento que é anunciado a chegada de uma pós-modernidade, uma pós-modernidade que aboli os fundamentos, prevalecendo-se da debilidade moderna fundada em narrativas produzidas por grandes filósofos, teólogos, sociólogos e psicanalistas que teceram a rede do iluminismo (racionalismo).

Para melhor compreensão desses acontecimentos e sua influência na doutrina Cristã, procurarei pontuar algumas mudanças que ocorreram na forma de pensar sobre a pessoa principal da fé cristã, Jesus.

No início do cristianismo, século I, Jesus é o homem com finalidades libertárias, o Jesus que resgata o homem do engano de um mundo constituído de valores oriundos de uma raça corrompida.  O Messias salvador que transforma o homem e o coloca na verdade de uma vida eterna com Ele. Porém, do século V ao século XV houve uma mudança no pensar sobre Jesus, período que envolve o começo e o fim da idade média. Neste tempo a pessoa de Jesus passou a ser conhecida como o Jesus feudo, Jesus latifúndio, um Jesus que agia diretamente na política, na cultura e na economia das nações por meio da Igreja que tinha como prioridade o domínio dos povos e a pregação de um Jesus elitizado, das indulgências, sem misericórdia, sem promessa de vida eterna com Deus.
Já no final do século XV até começo do século XVII, deu-se início o movimento intermediário entre a idade média e o iluminismo, período chamado de Renascimento que busca resgatar a filosofia antiga na intenção de pensar o mundo, a religião e o homem numa nova perspectiva. Este movimento proporcionou, primeiramente, o aparecimento da reforma protestante no início do século XVI com Martinho Lutero, através da publicação de suas 95 teses, em 31 de outubro de 1517, que abriu portas, no século XVIII, na Europa, para o início do intelectualismo Iluminista, um movimento que defendia o uso da razão (luz) contra o antigo regime (trevas). Rompia-se, então, definitivamente, o sistema religioso medieval, obrigando a teologia a sistematizar o seu conhecimento sobre Deus, Jesus, passando a se pensar um Jesus ligado à razão, o que contribuiu para o aparecimento dos grandes clássicos teológicos desse período.
No início do século XX, ao apresentar sinais de insuficiência, o pensamento estrutural iluminista começa a dar oportunidade para uma nova forma de pensar. Um pensamento que vai se efetivar negando o racionalismo moderno que toma o nome de filosofia pós-moderna. Nele, Jesus passa ser pensado como um Jesus de natureza linguística, individual, plural. Ou seja, um Jesus criado à imagem e semelhança das necessidades regionais e individuais. 
Está incutido na visão pós-moderna, de modo parcial, uma das vertentes reformista que delegava aos indivíduos a liberdade de interpretação e reflexão das escrituras.  Sendo assim, na esteira da filosofa reformista e modernista, surge o discurso da pós-modernidade, que se solidifica a partir de uma sociedade que se declara pós-industrial, o que leva a um novo modo de pensar o homem, Deus, religião, sociedade e no rápido crescimento do setor de serviços, em oposição ao manufaturado da tradição industrial e o aceleramento do desenvolvimento da tecnologia da informação, estabelecendo a era da informação. Nesta via, conhecimento e criatividade tornam-se matérias cruciais para o sistema econômico e vital dos indivíduos.
A cultura pós-industrial ou pós-moderna cria e vai priorizar valores que determinam uma nova produção cultural. Um discurso que tem como prerrogativa a não valorização da ideia de totalidade, do ser e, sim, da multiplicidade, da fragmentação, da ausência de referência, a valorização do relativo e da desordem. Para o pensamento pós-moderno, a verdade são os estilos de vida e estéticas que atendem a solicitação de mercado. A comunicação e a indústria ganham papéis importantes na difusão dos valores e, não, as instituições religiosas e públicas que priorizam narrativas normativas com teor ético.
No discurso pós-moderno não existe doutrina única que dê sentido único a todos os homens. Mas, deve-se aprender a conviver com o caos, a desorientação, a relativização e a instantaneidade das coisas. Nesta perspectiva, Jesus não pode ser entendido apenas como salvador de almas, mas um Jesus múltiplo que dá sentido a criação de propósitos e valores de mercado, um Jesus de consumo.
Na cultura pós-moderna Jesus se aproxima da configuração de um homem jogado a um projeto de consumo, um Jesus múltiplo que cabe em qualquer configuração cultural. Neste pensamento, Jesus é inserido em qualquer grupo de linguagem. As aberturas linguísticas permitem a produção de uma consciência de multiplicidade de caminhos e universos culturais determinantes. Para os filósofos pós-modernos, não é mais possível pensar um sistema que chancele a pessoa de Jesus como um Deus dotado de uma só doutrina, doutrina essa marcada pela desconfiança.
Na filosofia pós-moderna não há um ponto de vista privilegiado de onde seja possível fazer julgamento do certo e do errado, pois a vida não se restringe mais apenas a um pensamento lógico, racional, universal. Na pós-modernidade o comportamento é pautado, em sua grande parte, não por regras conscientes, mas por uma força que nos move, estimula, e que é chamada, segundo Nietzsche, vontade de potência.
Na visão pós-moderna a doutrina de Jesus deve estar em consonância com a realização de mercado, voltada para as necessidades individuais e culturais. Nesta via, o homem renasce com seus objetivos de bens de consumo, de direito e de bem-estar corporal. O movimento pós-moderno projeta em seu bojo um novo pensar teológico, um novo pensar relativo, que é a valorização do pensar de cada indivíduo comprometido com as exigências de mercado em concordância com as necessidades de consumo, baseadas na linguística que interpreta e anuncia satisfações momentâneas. Nesta vertente, Jesus deixa de ser o Cristo da alma para ser o Cristo de mercado.
No pensamento pós-moderno a realidade passa a ser a doutrina dos bens terrenos. Jesus na visão pós-moderna se materializa nas condições de consumo e lucro, ou seja, um Cristo determinado para as realizações de riquezas e bens materiais. A pós-modernidade indica a falência de um Cristo universal, o salvador de almas e abre espaço para o salvador de bens e do bem-estar corporal. O Cristo se torna um Cristo poroso que cabe em qualquer cultura, crença ou religião, a partir dele se deve pensar na multiplicidade de verdades que se ajeitam com as leis de mercado e as culturas.
O pensador italiano Gianni Vattimo, filósofo do meado do século XX, acredita que a transição da modernidade para a pós-modernidade configura a mudança de um "pensamento forte, para um " pensamento fraco ". No pensamento forte (ou metafísico) Vattimo entende a filosofia que se funda na verdade, na unidade e na totalidade, (um tipo de pensamento que proporciona "regras" absolutas para o conhecer e o agir). Quanto ao pensamento fraco (ou pós-metafísica), Vattimo alega que ele significa a recusa dessas categorias fortes e da legitimidade global, um tipo de razão normativa.
Para Vattimo, o pensamento fraco é explicitamente revelado como uma forma de niilismo que nos leva a liberdade, ele impede que sejamos aprisionados pelas verdades absolutas da nossa espiritualidade.
Segundo Vattimo, o pensamento fraco é cunhado no contexto mais amplo do relativismo que se posiciona contra o pensamento forte. Este relativismo alimenta o pensamento pós-moderno e está intimamente ligado ao enfraquecimento do ser, ou seja, do Deus Jesus, de sua doutrina, da origem das coisas e da causa primeira. Jesus se torna apenas uma verdade dentre muitas outras, o que destrói as ênfases dominantes da culpa, e valoriza a tolerância ligada a questão do destino.
Vattimo chega a conclusão, ao analisar o renascimento dos cultos religiosos e sua multiplicidade de doutrinas, que cada uma, ao seu critério, aparece com a verdade que interessa, o que levanta a bandeira do aforismo de que é preciso “ acreditar para acreditar”. Na análise de Vattimo pode-se entender que a doutrina universal cristã deixa de ser possível, pois não existe apenas uma doutrina do Cristo, mas doutrinas, o que faz rejeitar a questão da intolerância religiosa. Vattimo percebe que ao valorizar o pensamento fraco, as verdades religiosas corroboram para a ratificação do pós-modernismo, pois o ser universal, o ser da doutrina única e absoluta, está enfraquecido, o que obscurece a teologia tradicional que passa a ser vista como criadora de um Deus menor.
Jesus como o Ser eterno, absoluto, no movimento pós-moderno, é dotado de porosidade, do contraditório, do policêntrico, desprovido de singularidade, abandonado ao seu curso, ao seu destino, enfraquecido como absoluto.
A concepção de Vattimo revela, de forma bastante clara, que a filosofia pós-moderna fala de uma estreita relação do homem com a linguística, a estética e a criatividade. O que leva Vattimo anunciar o fim do pensamente forte, ou seja, o fim da modernidade. Entende que não é mais cabível no mundo contemporâneo um pensamento que exija certezas e fundamentos exclusivistas sobre o homem, sobre Deus, sobre a história e valores. Vattimo entende que a crise pela qual o mundo passa, abala as estruturas de uma verdade universal. Diz que todas as evidências e distinções estão borradas. Entende que não existe mais fundamento para ser conhecido com o qual o homem deva se preocupar. Hoje, vive-se um tempo das histórias, das verdades de cada um.
Segundo as concepção de Vattimo, o que se pode vivenciar hoje e valorizar são as condições do pensamento fraco. O conhecimento não centralizado que entra em uma zona cinzenta dotado de incertos contornos. Pode-se afirmar que o respaldo do pensamento pós-moderno é a ideia de que o homem lê o mundo a partir de uma zona linguística sem fixidez, mas históricas. Esta concepção de pensamento fraco altera a imagem de uma verdade pensada, absoluta. Esta verdade deve ceder, recuar abrindo mão de sua estabilidade e unicidade.
A realidade passa a ser o horizonte linguístico, porém não eterno, mas historicamente qualificado. Dentro deste horizonte linguístico o homem lê e interpreta e se relaciona. Porém, este horizonte é temporal e não eterno, o que leva a desaparecer os discursos e teorias absolutas sobre Deus Jesus, o homem, o sentido da história e o destino da humanidade.
Na premissa do pensamento pós-moderno ou do pensamento fraco é anunciado o fim da doutrina estável, o que valoriza à concepção das múltiplas doutrinas instáveis cheias de novas oportunidades de se pensar o mundo, Jesus, as coisas e o homem. O grito de Nietzsche “Deus está morto” anuncia, segundo Vattimo, o fim do discurso do ser, ou seja, das verdades últimas e definitivas. A verdade não se reveste mais do absoluto, mas passa ser a transmissão do patrimônio linguístico ou históricos, que oferecem a condição de uma nova compreensão do real.
No pensamento pós-moderno, a história deixa a ideia de progresso, de aproximação do fim, de leis aprimoradas, para valorizar as histórias das constantes superações de um processo social, econômico, religioso e cultural. Ou seja, a história passa ser as histórias de superações e não de implantação de leis cada vez mais aprimoradas. Nessa via, Jesus se torna o homem de superação e não mais o fim de todas as coisas com solução definitiva para o homem, mas um Jesus que orienta para superações. Jesus passa a ser um instrumento de utilidade capaz de oferecer condições de vida temporal e não eternas, um Jesus que atende as leis de mercado.
O pensamento pós-moderno abandona a ideia de uma racionalidade central da história. A história é substituída pelo mundo como linguagem que explode em racionalidades (ética, religiosa, sexual, cultural e estética) que falam abertamente sobre a ideia de que só há uma humanidade, aquela capaz de alcançar à custa de todas as peculiaridades, de toda individualidade limitada, efêmera e contingente, a dissolução dos fundamentos, ou seja, do ser.
O indivíduo pós-moderno é aquele que não tem mais necessidade de "garantia fornecida pela ideia de Deus", mas aceita o niilismo como oportunidade que o leva a aprender a viver sem ansiedade. Ele se satisfaz no mundo relativo de "meias verdades", fora de certezas absolutas que entendem como mitos da própria humanidade ainda primitiva e bárbara.
Vive-se o instante de uma humanidade que se desencantou com as verdades eternas que envolvem o social, a religião, a política, a ciência e o progresso. A compreensão da dinâmica pós-moderna leva em conta a comunicação e o consumo como fatores essenciais para entender a civilização contemporânea, o que enfraquece as ideias tradicionais e leva a desmistificação do ser. Estimula o interesse pelo que é alternativo em qualquer nível da vida.
O individual substitui os projetos coletivos e aprecia o culto ao corpo e aos livros de autoajuda. As doutrinas pós-modernas passam a revelar a existência de um Jesus que passa a ser entendido como o Jesus mercado, o Jesus poroso, relativo, o Jesus da superação individual e não aquele autor e consumador de todas as coisas, o alfa e o ômega.


BIBLIOGRAFIA

VATTIMO, Gianni. e Pier Aldo Rovatti (a cura di), Il pensiero debole, Feltrinelli, 2010, EAN 9788807721779.
REALE, Giovanni. História da filosofia, 6: de Nietzsche à Escola de Frankfusrt/ G. Reale, D. Antiseri; tradução de Ivo Storniolo. Paulus, 2006 São Paulo/SP – coleção história da filosofia; 6.
SANTOS, Boaventura de Souza. Introdução a uma ciência pós-moderna. Graal – Rio de Janeiro/RJ, 1989.

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4 de ago. de 2016

A HISTÓRIA E A QUESTÃO DO ENTENDIMENTO EM EDUCAÇÃO Luiz Dias do Nascimento Filho - Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ – NUCLEO DE ESTUDO E PESQUISA EPISTEME


A intenção deste trabalho nasceu do interesse pela discussão focada na possibilidade de existir um entendimento que ultrapasse o domínio de critérios tradicionais de compreensão do mundo. Critérios baseados em concepções de realidade idealista e ou realidade esclarecida. Métodos que entendem ser possível emancipar o homem histórico. Sendo assim, propõe-se trazer para o debate a questão do entendimento fundada na perspectiva de história de Marx, levando-se em conta a produção do conhecimento e a prática de ensinar dentro de uma abordagem epistemológica materialista. Entende-se que a perspectiva de Marx levanta questões importantes sobre o entendimento, sobre práticas pedagógicas que devem ser pensadas, devendo ser consideradas no seu valor em relação a vida. Esta proposta se torna relevante por ter como objetivo considerar as investigações de Marx sobre o entendimento, tendo como base a história e o avanço dessa na relação de produção material.

Introdução
O tema deste trabalho parte do pressuposto da crítica de Karl Marx ao pensamento idealista e sensível; teorias que valorizam a tradição dos jovens hegelianos e do pensamento de Feuerbach. Nossa intenção é conhecer como Marx rompe com esses procedimentos reconhecidos como verdadeiros e hegemônicos pela tradição e nos conduz a uma nova perspectiva de entendimento. 
Valorizou-se a crítica de Marx como crítica que é capaz de produzir questões importantes sobre a prática dos indivíduos históricos contrária ao pensamento inatista e a doutrina da valorização do conhecimento pela sensibilidade, particularmente a doutrina hegeliana do ideal, fundada em abstrações imaginativas como tentativa de emancipar o indivíduo enquanto indivíduo de uma realidade idealista.
Tentaremos verificar o pensamento de Marx pelo fato de reconhecermos que ele abre um leque de discussões que julgamos relevante à formação do entendimento, ou seja, a essa capacidade de avaliar os indivíduos e as coisas; julgar, estabelecer juízos que ultrapassam as abordagens epistemológicas tradicionais e que se firma na ação do trabalho material, fora de utopias inatistas e esclarecidas.  Buscaremos chegar ao teor da discussão em que Marx, de algum modo, esclarece sobre a possibilidade do aparecimento de um entendimento construído em bases concretas, para além de concepções não seguras, mas como produto de uma realidade material, construída na ação do indivíduo sobre a matéria, sobre a natureza e nas relações sociais. 
Entende-se que esta questão se torna importante por trazer revelações interessantes que possibilitam superar verdades tradicionais dominantes, e que leva a romper o domínio das concepções utópicas não confiáveis. A proposta deste trabalho torna-se relevante por se acreditar ser possível chegar a formação de um novo entendimento que avalie, julgue a partir de novos critérios de juízos.  Com isso, entende-se ser possível superar a faculdade dos juízos construídos em cima de doutrinas do esclarecimento e inatista que desprezam dimensões materiais históricas correspondentes à realidade da vida material. Entendemos que a via do materialismo histórico poderá nos conduzir a uma dimensão de um entendimento que se dá fora dos trâmites tradicionais e que leva a um julgamento que se constrói na ação sobre a natureza e nas relações sociais, na ação transformadora em que o indivíduo participa diretamente da transformação.

Karl Marx e a questão do entendimento
A discussão sobre a construção do entendimento sempre foi de interesse da ética para chegar a um resultado concreto sobre a realidade objetiva e a vida.
Jon Locke (1632-1704) preocupado em formular as condições do entendimento, leva em conta as atividades racionais.  Para Locke, o entendimento, assim como os olhos não conhecem a si mesmos, mas por um esforço em situá-los à distância, é possível fazer deles o seu próprio objeto (LOCKE, 1999). Locke estabelece o método de considerar determinadas faculdades apenas como possíveis de discernir, e a partir de então estudá-las se utilizando dos objetos que lhes dizem respeito.       
Locke considera que se pudermos descobrir até onde é possível chegar a formação do entendimento, até onde suas conclusões alcançam a certeza, e em quais casos ele pode apenas julgar e adivinhar, saberemos como nos contentar com o que é alcançável por nós nesta situação (LOCKE, 1999).  Locke diz que a maneira como adquirimos o conhecimento constitui suficiente prova de que ele não é inato. Afirma que o conhecimento não se encontra naturalmente impresso na mente porque não é conhecido pelas crianças e idiotas, etc. Locke procura afirmar que a capacidade é inata, mas o conhecimento não. Ele parte do princípio de que os homens têm princípios práticos opostos. (LOCKE, 1999)
Segundo Locke (1999), falando da capacidade inata, ele diz que basta olhar para a condição de ser possível investigar cuidadosamente a história da humanidade, levando em consideração as várias tribos de homens e suas indiferentes ações, será possível convencer-nos de que os princípios norteadores dessas atividades são designadas por um princípio universal ou regra que pode ser considerada absoluta. Por exemplo, a ideia em Locke é produzida no entendimento, mas não é inata e nem do trabalho material, mas, sim, de uma pessoa que pensa, esse ato de pensar engloba as possíveis potencialidades do entendimento (LOCKE, 1999). A ideia para Locke significa também os fantasmas provenientes dos sentidos, como lembranças, imagens, noções, conceitos abstratos. Compreende que as fontes de todo entendimento provem da experiência sensível e as reflexões, condições potenciais inatas.  Apesar da experiência sensível e a reflexão não constituírem propriamente conhecimento, são potencialidades que nutrem o entendimento com os materiais que possibilitam chegar a um determinado pensamento, o que chama de ideias. Locke compreende que as ideias chegam ao entendimento por graus, fornecidas pelo momento da experiência e da observação das coisas que aparecem ao indivíduo, e que não há caracteres originais impressos no entendimento (LOCKE, 1999).
David Hume (1711-1776) filósofo, historiador, economista e ensaísta escocês, conhecido principalmente por seu empirismo filosófico e ceticismo, contrapõe o pensamentos de Locke. Hume vai se debruçar sobre o problema da formação do entendimento abordando diretamente a questão moral.  Hume (2015) desenvolve sua teoria no confronto com o pensamento filosófico de Locke, no que conclui que a capacidade do entendimento se constrói na base da impressão. Propõe, assim, que todo conhecimento deriva dos sentidos (HUME, 2015).  As ideias que formam o entendimento, para Hume, não são inatas, mas aparecem derivadas das impressões. Essas impressões são oriundas de fatos e coisas que atingem o nosso psicológico ou percepção. Dessas impressões acontecem as representações que são as ideias concebidas, que se apresentam como deturpação da percepção bruta, original; reflexo do que foi impresso em nossa psique (HUME, 2015). Hume entende que todas as ideias válidas têm fundamento na impressão. Sendo assim, o entendimento de Hume tem como base as impressões e as relações entre ideias em forma de associações que dão origem a capacidade de estabelecer juízo (HUME, 2015).
Contrariando essas perspectivas de entendimento, no período de 1798-1857, Augusto Comte revindica a formação de um juízo que se forma a partir da observação. O que deu início a Filosofia Positiva, nos seus diferentes postulados, priorizando a ordem e o progresso.  Comte, constata que este entendimento se instala na história como um positivismo social. Ele nasce na exigência de se construir um conhecimento voltado para a formação de nova ordem social e religiosa. A ordem, segundo Comte, coopera com o progresso baseado na condição concreta. Essa proposta filosófica positiva coopera de forma direta para o nascimento de um entendimento que prioriza a questão técnico-industrial do período moderno e exalta o otimismo da origem do industrialismo (ABBAGNANO, 1970).
Na formação desse entendimento sobre a existência de um mundo que se oferece, o positivismo estende o conceito de progresso a todo universo das diferentes compreensões. Faz valer em todas as áreas o sentido dos resultados do trabalho consciente.  A capacidade de estabelecer juízos, nesse novo modo de pensar, passa a ser a única via capaz de oferecer compreensão a todo ramo da vida, o único meio possível de adquirir novos paradigmas sociais (RIBEIRO, 1994).
O positivismo deixa de ser o entendimento adquirido em bases interpretativas e da imprudência para se tornar puramente explicativo, que prioriza a neutralidade e a exatidão. Produz um modo de fazer juízos apoiado na explicação dos fatos e nas suas relações constantes, fundadas expressamente em leis, criando uma compreensão que valoriza apenas o juízo sobre as descobertas e previsões (RIBEIRO, 1994)
Comte, no “Sistema”, demonstra que o entendimento criado pelo método positivo desenvolve leis sociais e verifica as consequências dessas. Consegue, assim, elaborar um sistema político-religioso que tem como objetivo reformar o entendimento de sociedade com relação às coisas, a natureza e a religião. Ele se volta para o mundo real, ou seja, o mundo oferecido, o mundo apresentado de natureza social. A partir dessa via, entende que um vasto campo de pesquisa, valorizando a observação, abre-se para o trabalho (RIBEIRO,1994).
Dessa forma, surge um entendimento que prioriza um programa universal cujo objetivo é regulamentar e regenerar a vida humana no âmbito do privado e do público. Com essa filosofia, Comte se posiciona num embate contra o ontologismo aristotélico, contra o racionalismo e contra todos os sistemas que priorizam o conhecimento absoluto possíveis à razão (RIBEIRO,1994).
Nesta perspectiva, parece que Comte deixa compreender que o entendimento produzido, apenas, pela razão não é possível de ser validado a não ser os fenômenos, bem como suas relações. Segundo pensa, a razão não tem condições de chegar até a essência, ou as causas íntimas, por serem questões que se apresentam como impenetráveis.
O positivismo insiste em desprezar todas as determinações provenientes das causas. Ele valoriza as leis que devem ser percebidas nas relações efetivas entre os fenômenos. Nessa perspectiva substitui o que é a priori pelo posteriori. O mundo não é mais o inventado pela imaginação e sim o descoberto pela observação de todas as partes (COMTE, 1991).
Nesta perspectiva, torna-se a atividade do entendimento apenas o de sistematizar, do bom senso. Esta condição leva o pesquisador a ser um espectador de fenômenos exteriores, ele observa como se dão na relação.
A postura dessa teoria se efetiva a partir da oposição contra o quimérico, como também contra a incerteza das hipóteses: aquilo que é vago, absoluto, inorgânico e intolerante.
Tem como base o genético indutivo, ou seja, primeiramente se prende ao fato, em segundo a indução, valorizando leis de coexistência e de sucessão, especulando a partir dessa base a existência de novos fatos que escaparam à observação direta, detectados pela experiência (COMTE, 1991).
O entendimento que tem como base a realidade natural social não procura a ação do homem na sua relação com o mundo, nem com seu semelhante, como também não se interessa pelas causas íntimas. Antes, prende unicamente à descoberta e à combinação de leis, leis invariáveis, e às relações invariáveis de sucessão e semelhança. Porém, por outro lado, Comte admite uma lei fundamental, uma lei que se divide em três estados, por ser o modo como o pensamento ocorre, o que o leva a fundar a base de sua doutrina pela explicação na história (COMTE, 1991).
Foi o meio que encontrou para conhecer a importância da história no desenvolvimento do entendimento humano. Os três estados são assim representados: Teológico, Metafísico e, por fim, o Positivo. Nessa compreensão fica claro que a capacidade de estabelecer juízos passa por estados, constituindo uma verdadeira consciência apenas quando alcança o Estado Positivo. Tanto a sociedade como os indivíduos estão submetidos a passarem por esse processo de evolução mental (RIBEIRO,1994).
O Estado Positivo está tão preso à natureza que descarta qualquer possibilidade de conhecimento fora do seu contexto. Nele só é valido o que pode ser visto. Torna-se necessário que as coisas estejam presentes de modo concreto. Com isto, ao se colocar como o verdadeiro entendimento sobre o mundo e a sociedade, descarta a ação do indivíduo no mundo (COMTE, 1991).  
O espírito positivo, prima pela classificação dos fenômenos, em última análise, em busca do semelhante. Esse processo classificatório é um modo de reunir tudo que possui semelhança. Os fenômenos, nessa perspectiva, necessitam de ser colocados juntos para que haja entendimento (julgamento) de uma situação complexa. Noutro momento, o Positivismo busca, também, a generalização que se situa na afirmação probabilística, e não na certeza absoluta. Nessa metodologia a causa não é tida como solitária e absoluta, seja na origem ou no fim, mas como combinação relacional causa e efeito. Com isso, nunca se pode ter uma certeza absoluta do que se observa, mas apenas probabilidades (COMTE, 1991).
O entendimento se estabelece no estado de probabilidade. Esta prática científica passa, então, a ser considerada como um processo de evolução contínua, evolução essa que se dá pela acumulação de informações, adotando para si uma prática meticulosa, coerente de verificação. O entendimento positivo alicerçou-se em três momentos fundamentais: a história, a classificação das ciências positivas e finalmente a sociologia. Surgindo desse momento, o Estado Positivo que é um estado que submete a imaginação e a argumentação aos caprichos da observação (GIANNOTI, 1983).
Foi no fervor dessas discussões sobre a capacidade de julgamento do homem que em 1818 – 1883 surge Karl Marx como filósofo revolucionário. Sua filosofia exerceu influência em várias áreas do conhecimento, tais como Sociologia, Política, Direito, Teologia, Filosofia, Economia e outras. O pensamento de Marx rompendo com as cadeias do idealismo e da sensibilidade, utilizando-se de uma análise histórica do homem, traz a oportunidade de se conhecer uma nova concepção de entendimento no debate filosófico, refutando, assim, as teorias idealistas e do esclarecimento.
Fazendo-se uma análise sobre as condições históricas do homem a partir de uma concepção primitiva de se achar no mundo, verifica-se que essa condição se torna a primeira forma de aproximação do homem histórico do seu habitar. Um se achar não somente com os olhos, mas com todas as condições de indivíduo histórico. Este modo primitivo de se achar no mundo, desenvolve e pluraliza atividades materiais que possibilitam organizar e preservar a vida, o que faz aparecer às condições reais de vida.
Marx percebe que a realidade material alimenta as condições de vida, criando, assim, o conhecimento real sobre a vida, sobre os homens e suas relações históricas com a materialidade da natureza e com seu semelhante. Marx, verifica que desde cedo o mundo material com suas determinações possibilita aos homens a criação e o aperfeiçoamento de mecanismos específicos de manutenção da sua própria existência e das relações sociais. Desta forma, o trabalho material vai se constituir a base da organização mental dos homens (MARX, 2007). Parece que nesta via é possível conhecer o homem e o progresso das ações transformadoras, das relações com a natureza e com o semelhante, bem como, o potencial de julgar e estabelecer juízos, condição que se torna instrumento de sustentação da vida.
Marx, numa franca oposição aos jovens hegelianos e ao mundo sensível, leva esta questão dos juízos aos seus fundamentos. Acusa os Jovens Hegelianos de terem criticado os indivíduos por formarem ideias falsas sobre si mesmo, sobre o mundo e sobre o que deveriam ser, mas valorizam como princípio do entendimento, a essência do homem (MARX, 2007). Esta forma de julgamento, segundo a leitura que se pode fazer sobre os textos de Marx, está fora da realidade dos indivíduos reais, por se tratar de uma realidade ideal, sobrenatural e sensível (MARX, 2007).
A discussão do materialismo indica que o caminho para um entendimento real, concreto deve ser fundado na via epistemológica que valoriza a ação do homem sobre a matéria e nas suas relações sociais, e não na ideia ou sensibilidade. Marx busca um conhecimento que se apresente ou se manifeste nos seus processos materiais em que o homem participa dele através do seu trabalho (MARX, 2007).
Torna-se possível, na perspectiva materialista, buscar diferentes explicações da dinâmica social do homem, do mundo o que leva a identificação de uma faculdade que julga e esclarece diferenças (MARX, 2007). A matéria é que dá ao homem as condições de realidade e do diferente, por ele está inserido nessa natureza material, ou seja, nos seus aspectos diferenciáveis. O homem marxista constrói sua capacidade de julgar e estabelecer juízos no âmbito da ação sobre a matéria, no conflito, no trabalho dialético com a realidade material.
Percebe-se que a perspectiva de Marx contraria as dos Jovens Hegelianos, que compreendem que o entendimento é produto de ideias que determinam as relações entre os homens como: seus gostos, as suas cadeias e os seus limites (MARX, 2007). Parece que há uma proposta junto aos Jovens Hegelianos em substituir o entendimento fantasioso pelo entendimento formado a partir da crítica das ideias essenciais. Essa concepção de entendimento beneficia diretamente o trabalho burguês que via nessa formação a possibilidade de se firmar na dominação (MARX, 2007).
Em Feuerbach, parece que a sua teoria sobre a formação do entendimento, ou seja, a capacidade de avaliar os indivíduos e as coisas, apesar de buscar no material sentido para as coisas, privilegia o campo sensível. Marx entende que Feuerbach, apesar de trabalhar com a materialidade, valoriza o campo sensível. Para Feuerbach, acusa Marx: as coisas, a realidade, o mundo sensível é tomado apenas sob a forma do objeto ou da contemplação e não da atividade material (MARX, 2015). A teoria do entendimento de Feuerbach prioriza a busca de objetos sensíveis distintos dos objetos do pensamento, fora da atividade da ação do homem sobre a matéria.
Feuerbach deixa de fora o significado da atividade transformadora da prática, enquanto Marx afirma que é na prática que o homem tem como comprovar a construção da capacidade de julgar fora de um sentimento.
O entendimento real, concreto da realidade e do poder surgem na materialidade, é nesta que aparece a existência de um entendimento real concreto, perspectiva materialista (MARX, 2015).
Para Marx, as circunstancias de construção do entendimento são precisamente causadas pela atividade dos homens na transformação da natureza que o educador tem que ser constantemente educado (MARX, 2007). Marx, parte do princípio de que o entendimento está sempre em construção mediante as atividades do homem histórico. Nesta atividade os indivíduos criam novas circunstancias que impõe mudanças. Com essas afirmações pode-se compreender que, na perspectiva de Marx, o entendimento como faculdade do conhecimento é produto da atividade ou do trabalho do homem sobre a natureza, sobre a matéria (MARX, 2015).
O que fica claro é que não basta ter um entendimento do mundo de maneiras diferentes, mas um entendimento baseado nas atividades transformadoras do mundo que sempre são revolucionárias. Por este motivo, Marx critica a construção do entendimento epistemológico de Feuerbach alegando a insuficiência deste procedimento materialista que considera as coisas, a realidade, o mundo sensível tomado como forma de objeto ou da contemplação, em vez de valorizar a atividade sensível material não subjetiva (MARX, 2015). Segundo as afirmações de Marx, é necessário que percebamos que a mudança ou o desenvolvimento do entendimento aconteça das circunstâncias e das atividades humanas que aparecem como processo revolucionário sobre a matéria (MARX, 2007).
Acompanhando esta discussão sobre a formação do entendimento, encontramos em Gaston Bachelard (1884-1962) o desenvolvimento de uma teoria que se confronta, também, diretamente com a perspectiva do entendimento positivista, idealista e sensível. Em sua apresentação, Bachelard afirma que a experiência construída, a experiência onde aparece o trabalho do indivíduo, ela contradiz a experiência comum ou sensível, dos olhos, da relação e do ideal.
Para Bachelard o entendimento formado pela experiência comum é uma experiência que se dá na justaposição ou na observação justaposta. Uma experiência que não é construída, uma experiência sem a participação do indivíduo (BACHELARD, 1996).
Bachelard compreende que a experiência concreta deve se afastar da observação, do esclarecimento, ela deve ter a marca do seu autor. A formação do entendimento concreto, na perspectiva bachelardiana, dá-se contra o entendimento primeiro, destruindo concepções anteriores malformadas, superando a este que aparece cheios de obstáculos epistemológicos (BACHELARD, 1996).
Segundo Bachelard, é necessário, primeiramente, saber formular problemas, mas uma formulação que não procede da espontaneidade, mas sim do trabalho, da atividade da ciência sobre o real concreto (BACHELARD, 1996).
É nesse sentido que Bachelard tenta chegar a uma nova compreensão sobre a construção da capacidade de julgar, um entendimento que se origina no trabalho daquele que participa diretamente sobre a realidade do mundo. Segundo sua perspectiva, toda atividade do indivíduo procede do trabalho de problemas materiais. Nada é gratuito, nada é evidente, tudo é produto do trabalho do indivíduo sobre a realidade concreta (BACHELARD, 1996).
Bachelard rompe com a concepção de naturismo, bem como, com a ideia de gratuidade. Coloca o pesquisador como autor da produção do conhecimento. Condição que Marx reivindica em oposição aos idealistas e a teoria do esclarecimento.
Na concepção bachelardiana o entendimento não pode compreender a matéria pela observação como desejava o método positivista, mas pela competência de um entendimento que se constrói no trabalho sobre ela, um trabalho de manipulação e transformação das condições reais de existência. A matéria, para Bachelard, passa a ser um pretexto para a condição de trabalho do homem e a via de progresso da capacidade mental. Bachelard defende a posição de que o entendimento deve se formar no instante em que se enfrenta a realidade concreta, o real concreto (teoria). (BACHELARD, 2001).
O homem que utiliza bem a capacidade de julgar, a partir do aprendizado do novo método de produzir ciência, a primeira visão, ou a visão do fenômeno no instante de sua aparição, não pode oferecer o sentido, e ou significado exato do objeto. Bachelard conclui que o primeiro momento do visto não capacita o indivíduo a ter descrição bem ordenada e hierarquizada.
O objeto que se dá na claridade com seu anunciar e sua complexidade evidente, colorido, cheio de atrativos que leva a sedução; a nova ciência o compreende como obstáculo epistemológico. Neste caso, o entendimento tem menos compreensão do que conhece. Constrói-se assim, uma faculdade que apenas certifica-se da existência, sem, no entanto, ter a devida compreensão. A única compreensão existente é da possibilidade de selecionar e classificar, o que leva a constatar a existência de uma realidade imprecisa, fixada numa imagem pitoresca, a imagem dada em suas múltiplas variedades, firmada na hipótese não verificada, fundada mais na crença e nas múltiplas imagens oferecidas (BACHELARD, 2001).
Bachelard procura pontuar uma faculdade que se forma na perspectiva da luz de uma nova ciência. Aquela construída e que julgar na dimensão do trabalho, na luta contra o pitoresco, contra as ideias, contra a sensibilidade, contra as analogias e metáforas, não permitindo que a contemplação ou a explicação tome o lugar do trabalho sobre o real. Nesse aspecto, a construção de um novo entendimento deve priorizar o trabalho do contra, contra tudo que é aparente, que é representação. Com isso, o conhecimento deixa de ser produto do aparente, das ideais vazias, do claro, para ser produto do labor do trabalho crítico das condições reais de materialidade que lhe deram origem. O entendimento que se constrói no trabalho crítico, difere do entendimento instruído pelo aparente (BACHELARD, 2001).
A faculdade do entendimento elaborada a partir do trabalho crítico consegue revirar os problemas, variá-los uns contra os ostros o que leva a progressão do conhecimento. Este trabalho tem contra si, e que precisa superar, as convicções primeiras, que são convicções humanas. Convicções iniciais que são fundadas em certezas imediatas, do certo e da crença no verdadeiro (BACHELARD, 2001).
A capacidade primeira de julgar, produzida pela experiência primeira se alimenta nas convicções humanas, como: paixões, crenças e desejos inconscientes. Uma mente estimulada na primeira experiência que se baseia em informações distorcidas e imprecisas, e que traz para si momentos confusos da realidade material (BACHELARD, 2001). Torna-se necessário lutar contra essas forças simbolizantes, efetivadoras de crenças, de certezas que antecedem à realidade construída, e que estão alojadas no inconsciente, e que predominam na forma de ideologias.
Atentando para a via epistemológica bachelardiana, percebe-se que a oposição de Marx sobre as concepções tradicionais de entendimento ajuda a desprender o homem histórico de tradições dominantes utópicas o que irá favorecer a contemporaneidade no sentido de avançar sobre a formação mental do entendimento, o que possibilita chegar ao debate sobre questões éticas importantes do processo de sustentação da vida (MARX, 2007).
O primeiro ato histórico para a construção do entendimento começa, segundo Marx, na satisfação ligada diretamente a questão das necessidades que orientam a vida material. Esse ato é, exatamente, um ato cuja finalidade é a vida. Na vontade de satisfação vão aparecer novas necessidades que comporão o primeiro ato histórico (MARX, 2007).
Na perspectiva materialista passa-se a conhecer a formação de um juízo que se constrói em bases materiais que tem como pressuposto a ação do homem sobre a natureza e nas relações sociais. Este conhecimento valoriza as ações e relações envolvendo natureza e indivíduos, que lidam com as condições de necessidade e sustentação da vida. Nesta perspectiva, Marx aponta para um conhecimento que se forma levando em consideração o conflito, produto da contaminação do espírito com a matéria (MARX, 2007).
O conflito materialista é fruto de uma linguagem que nasce no carecimento das necessidades de transformação e troca. Tal concepção leva a crer que o entendimento desde cedo já se constrói nessas relações sociais e na ação do homem sobre a natureza. Marx, condenando a questão do idealismo e do esclarecimento, afirma que tanto um como o outro produz um mero entendimento do meio sensível, imediato, possuindo um vínculo limitado com coisas (MARX, 2007).
Com a consolidação da ação sobre a natureza e relações sociais, a capacidade de estabelecer juízo valoriza o trabalho material e espiritual. Este fato conduz a imaginação distinguir a diferença entre o entendimento que vem da ação, campo da realidade concreta e aquele que representa algo fora do real concreto. Ao discernir esta diferença o entendimento promove a sua emancipação do mundo e cria teorias (MARX, 2007).
Marx entende que a identificação da materialidade é a comprovação da minha existência no mundo. Uma existência que se dá no conflito, uma certa relação determinada com a natureza, fomentada na forma de sociedade e individualismo (MARX, 2007). Neste aspecto surge a identidade, produto de uma relação entre natureza e homem, e sociedade. Uma existência construída a partir da relação entre os homens em sociedade que condiciona a relação com a natureza. 
O entendimento como segundo momento da apreensão da natureza e da sociedade, mesmo que esteja em contradição com as relações existentes, pelo fato das relações sociais existentes estarem em contradição com as forças produtivas, a identificação desta contradição será possível por este entendimento teórico, o que não acontece com a observação, a sensibilidade e a perspectiva ideal.
O método que Marx se utiliza de premissas que não permitem arbitrariedade, nem crenças, são os indivíduos reais e a ação desses sobre as condições materiais de existência, ou seja, premissas verificáveis (MARX, 2007).
Diante desta investigação, o primeiro estado real que Marx encontra é constituído pela existência corporal dos indivíduos e as relações que esse desenvolve. Marx não se preocupou, propriamente, com a constituição física do homem ou das condições naturais, geológicas, orográficas, hidrográficas, climática e outras que foram dadas já elaboradas. Mas que a historiografia deve partir das bases naturais e da modificação causada pelos homens no decurso da produção histórica (MARX, 2007).
A construção da capacidade de julgar dos homens sobre a base de como produzem os seus meios de sobrevivência depende em primeiro lugar da natureza, dos meios de existência, mas que não é uma mera reprodução da existência física dos indivíduos.  Mas, um modo determinado de tais indivíduos, uma forma determinada de vida, um modo de vida determinado.
É justamente neste campo que se pode perceber a prática de como os indivíduos manifestam o seu comportamento expondo aquilo que conhecem. O que conhecem coincide com a sua produção: tanto o que produzem como a forma como produzem. Um entendimento que revela a dependência das condições materiais de existência, que vão revelar os tipos de relações condicionadas de produção (MARX, 2007).
Analisando essa questão em âmbito globalizado, os diferentes tipos de relações entre nações dependem da condição de formação do juízo que se revela a partir das forças produtivas, da divisão de trabalho e dessas relações internas; princípio universal historicamente conhecido. Nisto, torna-se real que o grau de desenvolvimento do entendimento procede do grau da divisão do trabalho.
Dentro desta perspectiva material as ideias produzidas e que se integram a questão moral, estão ligadas diretamente à atividade material e as relações comerciais materiais entre os homens. As representações, o pensamento, o comércio intelectual dos homens, emanam diretamente da dimensão material, bem como as leis, a política, a moral, a religião e outras situações. Todas essas produções são executadas pelo julgamento do entendimento dos homens que produzem as suas verdades, verdades materiais e históricas. Estes são os homens reais, atuantes que foram levados por forças produtivas e modo de relações.
O entendimento nunca é mais do que o ser que entende, esse ser que se concretiza no processo da vida real. O entendimento não desceu do céu para a terra, pelo contrário, ele parte da terra para o céu. A faculdade do entendimento real concreto, não parte daquilo que os homens dizem, imaginam e pensam, nem do que são nas palavras, no pensamento, na imaginação e na representação para se chegar ao concreto da vida real. Mas parte do processo de vida real que julga e representa o desenvolvimento dos reflexos e das repercussões deste processo vital (MARX, 2007).
Nenhum julgamento pode vir antes da história da produção material. Não é o entendimento das coisas que determina a vida, mas, sim, a vida que determina o entendimento. Este modo como o assunto é levado não é desprovido de pressupostos, mas parte de premissas reais. Essas premissas são os homens apreendidos no seu processo de desenvolvimento real em condições determinadas e visíveis empiricamente. A história deixa de ser uma coleção de fatos sem vida, como apresentam os empiristas para se tornar a história concreta das ações dos homens nas suas relações materiais vitais (MARX, 2007).
Não há uma libertação do entendimento baseada simplesmente na dissolução de uma consciência de si... pelo fato de não ser possível levar a cabo uma libertação real sem ser no mundo real e através de meios reais. Como, também, não se pode abolir escravos sem instrumentos materiais, nem a servidão sem aperfeiçoar a agricultura. Os homens não poderão estabelecer um julgamento real do mundo, da vida enquanto não estiverem aptos a produzirem seus alimentos e satisfazerem suas necessidades de moradia e vestuário de modo perfeito (MARX, 2007). A formação de um novo entendimento passa a ser um fato histórico e não intelectual. Uma libertação provocada por condições históricas de produção material envolve o progresso da indústria, do comércio, da agricultura em virtude dos seus diferentes estádios de formação.
Levando em conta estes questionamentos, infere-se que o primeiro fato histórico que possibilita a formação de um entendimento real do indivíduo é a produção dos meios que permitam satisfazer as necessidades, a produção da vida material. Trata-se de uma condição fundamental de toda história a fim de manter os homens vivos. Mesmo quando a realidade material se reduz a um pedaço de madeira, essa realidade implica na existência da atividade que produziu o pedaço de madeira.
Considerações finais 
Levando-se em as considerações feitas neste trabalho, pode-se chegar a algumas conclusões, sem, no entanto, esgotar o assunto, mas trazendo questão importantes para o debate sobre as condições dos homens concretos em seu habitar, no sentido de se compreender o valor desses que se educam a partir de uma realidade concreta que se tornam parte importante no processo de transformação, exercendo julgamentos e critérios de desenvolvimento social a partir da sua própria realidade vivida.
Entendemos que a proposta levanta problemas que se tornam importantes na discussão epistemológico, como: 1) Que tipo de sociedade a nossa educação deseja criar já que a mesma não permite que o indivíduo lide com questões concretas. 2) Por que não se permite que a educação atinja o seu verdadeiro objetivo nas relações sociais concretas e na preparação de indivíduos capazes de julgar e formar critérios de mudança justos? Tais questões são importantes no debate epistemológico para a formação de um novo entendimento, já que existe indicação que aponta para a necessidade de um conhecimento que tenha afinidade direta com a formação de uma mente que julgue e estabeleça critérios que vão de encontro as condições de necessidades materiais dos homens concretos.
Sendo assim, posso avaliar que esta discussão sobre a capacidade do indivíduo enquanto capacidade de estabelecer juízos, nos alerta para a possibilidade de construirmos uma sociedade que tenha afinidade com a vida, com a justiça, com a valorização do trabalho em concordância com as necessidades dos indivíduos, a fim de se ter uma sociedade mais justa e menos selvagem.

Referências bibliográficas
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RIBEIRO, João. O que é positivismo. São Paulo: Brasiliense, 1994. 15

27 de mar. de 2013

A PEDAGOGIA DA EMANCIPAÇÃO DO SUJEITO NA PRODUÇÃO DO CONHECIMENTO: UMA QUESTÃO IMPORTANTE PARA OS DIAS ATUAIS

Luiz Dias do Nascimento Filho
Núcleo de Pesquisa e Estudo EPISTEME - UERJ
       RESUMO
A intenção deste trabalho nasceu do interesse pela discussão de uma nova pedagogia que ultrapasse o domínio dos critérios tradicionais de produção do conhecimento. Critérios que se baseiam na concepção de conhecimento científico que privilegia a realidade esclarecida. Método que entende ser possível a emancipação do sujeito pela prática da explicação. Um modo de ensinar e aprender que instrui o outro, cujo limite é ser igual ao mestre. Sendo assim, propõe-se neste trabalho trazer para o debate a questão da emancipação do sujeito do conhecimento, levando-se em conta a formação pedagógica que privilegia a atividade de ensinar e conhecer numa nova abordagem epistemológica. Esta proposta será desenvolvida considerando a discussão que se faz, tendo como foco as perspectivas de Gaston Bachelard e Jacques Rancière sobre a emancipação do sujeito presente no ato de aprender e ensinar. Logo, uma pesquisa teórica baseada na literatura filosófica e educacional. Torna-se um debate que valoriza a compreensão de um modo da produção epistemológica em que o sujeito se constrói construindo o conhecimento, a partir de uma nova formulação pedagógica.  Para isto, algumas questões foram levantadas como fundamentais e importantes nesse processo: as interrogações sobre a necessidade, a criatividade, a imaginação e por fim, a possibilidade da existência de um novo modelo pedagógico que possibilite ao sujeito a libertação da tradicional forma de geração de conhecimento que se efetiva pela explicação.
Palavras chaves: emancipação, conhecimento e educação
INTRODUÇÃO
O tema deste trabalho parte de uma leitura crítica de Jacques Rancière sobre o “Mestre Ignorante”, que releva a questão do aprender e ensinar numa perspectiva focada na emancipação do mestre e do aluno, e a de Gaston Bachelard sobre a imaginação, como base ampliada na produção do conhecimento. Tanto Rancière como Bachelard priorizam a emancipação fundada no valor do trabalho do que ignora. Ambos procuram colocar o homem no centro de uma produção cognoscente, que se torna condição fundamental para sua emancipação. Tanto Rancière como Bachelard valorizam a perspectiva baseada no princípio da liberdade, desvencilhada da tradição embrutecedora que se perpetua pela transmissão do conhecimento por meio da ação explicativa no período da formação escolar. Uma tradição pedagógica que se apóia no passado intelectualizado que deseja se reproduzir pela explicação. Metodologia, segundo Rancière, que implanta no que ignora um conteúdo formado e reproduzido através da tradição da ação educativa baseada na lógica da explicação. Rancière avalia e julga essa prática denunciando a sua intenção, ou pelo menos, as suas consequências, como prática embrutecedora, que tem como fim último sustentar a desigualdade entre o que sabe e aquele que ignora. Essa denúncia, pelo que parece, encontra em Bachelard a mesma acolhida numa outra perspectiva.


EXPLICAÇÃO E PROVOCAÇÃO
Tomando-se por base esses dois pensadores é que nesta investigação se traça um paralelo entre as duas pedagogias que se julgam capazes de emancipar o homem: a pedagogia da lógica da explicação e da lógica da provocação.
No pensamento de Rancière, a opção se dá pela pedagogia da provocação, já que reconhece a explicação como um modo nocivo no exercício da aprendizagem. Rancière entende a explicação como fator de desigualdade que se estabelece entre o mestre e o aluno que aprende. Considera esse método como um instrumento embrutecedor da inteligência. Um método que estabelece diferença entre o que sabe e o que ignora. A explicação, na perspectiva de Rancière, é entendida como um princípio que busca impor determinado tipo de conhecimento.
A pedagogia da explicação torna-se assim, uma prática que reivindica para si a questão da clareza do conhecimento, uma ação que valoriza a transmissão de conteúdo que tem como alvo principal eliminar dificuldades e conflito do aluno. Esta via da explicação, segundo Rancière, cria uma inteligência que se estabelece numa determinada hierarquia. Ele entende que o método da explicação conduz o homem que ignora a ser desigual ao que ensina. Cria assim, uma forma de inteligência cujo limite é a inteligência daquele que sabe. Uma inteligência que se estabelece dentro de limites dados pelo próprio mestre que instrui através da explicação.  Essa ação encontra em Bachelard a mesma resistência, Bachelard parte do princípio de que o passado não pode explicar o presente, e sim, pelo presente se explica o passado. Com isso, deixa claro, a condição improdutiva da ação pedagógica da explicação, pelo fato de entender que esta se prende a uma tradição histórica que valoriza o acúmulo de informações. Para Bachelard, a emancipação do homem na aprendizagem vem quando esse se coloca contra o que é presente, num esforço que requer certo rigor. Este esforço se lança contra o já conhecido para deformar e buscar na sua interioridade, o que ainda não foi pensado. Este método não está preso à explicação para a transmissão, mas uma explicação que aparece no exercício do próprio trabalho da produção do conhecimento. Uma atividade que se renova a cada instante. No método bachelardiano, não tem um mestre que dê limite, mas um mestre que estabelece horizonte. Nesse procedimento, Bachelard percebe a emancipação do homem, que num contra conhecimento anterior consegue, no exercício do seu trabalho, chegar ao entendimento sobre as condições que o mesmo se deu (BACHELARD 1971).
Nessa atividade o espírito exercita o seu trabalho por saltos e rupturas, sem acúmulo, sem descrições, mas por temas-problemas. A história da ciência, na compreensão de Bachelard, é produzida por rupturas e não por acúmulo, não cabe uma explicação, uma recordação, mas uma lembrança dos fatos (BACHELARD, 2001). Cada lembrança possibilita um momento de ruptura, dos saltos, da novidade, do enfrentamento, um trabalho de esforço que excita o espírito a se instruir. Na história das ciências não há reforma do passado, mas rupturas que produzem novas teorias o que possibilita novas maneiras de pensar o mundo e o homem. No livro a “Poética do Devaneio”, Bachelard faz uma advertência interessante. Uma advertência que mostra como acontece, ou como se pode compreender uma atividade emancipadora do homem no desenvolvimento do seu trabalho cognoscente. Ele enfatiza a necessidade que se tem de chocar as palavras familiares para que essa libere novos significados, latentes, em seu interior, significados que estão adormecidos (BACHELARD 2001). 
Com esse pensamento de Bachelard, pode-se entender a preocupação que tem Rancière quando tenta deslocar o mestre da lógica explicativa para a lógica da provocação. Fora de um campo que se contenta com palavras que dormem em seu significado, seguindo o caminho de uma tradição presa nos vícios e hábitos intelectualizados. Para Rancière, o mestre que se orienta por essa tradição não provoca, mas obedece à lógica, a lógica do que ensina e a lógica do que aprende pela explicação – o aluno ignora e o mestre conhece. Rancière critica a pedagogia que valoriza a condição daquele que transmite; a lógica do falar o que aprendeu de outro que explica.
Trazendo a questão da emancipação na perspectiva de Bachelard, ele entende que ela se dá num trabalho árduo. Um trabalho que sai do vício da simples adjetivação e relativização. Bachelard vê a atividade pedagógica como algo mais profundo, por isto, propõe uma produção cognoscente a partir do presente, ou seja, sem narrativas, descrições ou explicações, mas um conhecimento que por si só se explica. Um tipo de trabalho que se dá por sobreposição, um conhecimento que se preocupa com o domínio e não com o aparente ou o relativo (BACHELARD, 2001).
Por exemplo, quando pensamos no conceito “corajoso” na atividade justaposta se explicaria que o corajoso é o não fraco, o destemido, o não covarde, o não medroso... Essa prática necessita de um explicador que se proponha a trazer a clareza desse conceito por uma série de adjetivantes. Já na atividade sobreposta, o procedimento se dá de outro modo, ele não busca adjetivos, não busca o que está fora do conceito, ou o que se relaciona com ele, mas o que pertence a si memo. Esse trabalho não necessita da figura do explicador, mas do provocador. O conceito “corajoso”, nessa perspectiva, é analisado de modo diferente. A investigação se dá por verificação e não pela descrição nem explicação. Busca a combinação substancial – fragilidade e resistência. Quando se olha alguém a desafiar certos perigos, vê-se nesse indivíduo a superação da sua fragilidade mediante sua resistência, que se conceitua de corajoso. Esse conhecimento torna-se emancipador, por dispensar a figura do explicador e se encaixar numa outra lógica. Nesta lógica, a história não está fora do conceito, mas inserida nele, ela passa a revelar outras condições de conhecimento ao chocar-se o significado adormecido em cada palavra, o que leva a perceber que ela em si só, explica-se, explica o seu passado substancial. Nesta via pedagógica o indivíduo é levado a olhar para dentro, um olhar que ultrapassa o superficial, o já conhecido e relativo, construído por justaposição. Este ato de ultrapassar o conhecido é que leva o homem, na perspectiva bachelardiana, a se emancipar no exercício do seu trabalho.
Neste limite se marca a ação da lógica da explicação e a lógica da provocação. Tanto Rancière quanto Bachelard, optam pela segunda. Ambos entendem que a primeira tem como fim o mestre detentor do saber, que se coloca como último na avaliação daquele que ignora. Por isso, Rancière entende que o destino do que ignora, na pedagogia do explicador, é ser outro explicador, um reprodutor do conteúdo. (RANCIÉRE 2004).
Trazendo o pensamento de Gaston Bachelard, sobre a faculdade imaginativa, na perspectiva da lógica da provocação, no Novo Espírito Científico, observa-se que essa passa a ser entendida como formal, material e poética. A imaginação formal, ela clareia outras imagens na totalidade do que é percebido, o que possibilita a novas descobertas. A imaginação material, sua função é deforma tudo que se apresenta numa determinada forma, buscando imagens ausentes no modelo presente (BACHELARD, 1998). Ela ultrapassar o aparente, ou a representação, na busca do que se encontra para além do intelectualizado, ela possibilita a atividade da provocação, pois sua função é sempre se opor ao conhecido em busca da intimidade. Quanto à imaginação poética, essa combina os elementos alcançados pela imaginação material produzindo uma nova imagem que salta para o interior do eu, uma imagem reveladora de um novo sentido e um novo significado contra o último conhecimento (BACHELARD, 2003). Torna-se necessário a atividade dessas três funções da imaginação, atuando de forma sincronizada, bem ajustada para que seja evitado o embrutecimento intelectual. O homem na sua atividade imaginativa sincronizada e integral, ele forma, deforma e combina num dinamismo imaginativo. Cabe ao mestre, pela provocação, articular essa potencialidade humana.
Quando Rancière repudia a explicação, pode-se entender a partir do pensamento de Bachelard que esse repúdio deve ser considerado pelo fato da explicação trabalhar apenas com o que é delimitado pela imaginação formal, a imaginação formal na sua condição unicamente de buscar imagens ocultas no discurso explicativo, formando imagens além da realidade do mestre que explica. A ação do explicador inutiliza as funções da imaginação formal, material e poética, não havendo necessidade maior em avançar para além do discurso do mestre (BACHELARD, 2001).
Por outro lado, na perspectiva bachelardiana, não há distância que a escola ou a sociedade possa reduzir entre mestre e aluno, quando se trata da ação de uma faculdade imaginativa que não cessa de produzir imagens. Isso, pelo fato da sua condição de deformar, combinando, trazer outra coisa para logo em seguida superar. Ao imaginar sobre o pensado, este pensado passa a trazer outra coisa ainda não presente. Isso mostra o valor da perspectiva de Bachelard quando se verifica no pensamento de Rancière a sua preocupação com a questão do aprender e ensinar, que não deixa de acentuar a perversidade da lógica da explicação (RANCIÈRE, 2004).
Na lógica da explicação, segundo Rancière, o aluno perde o seu potencial criativo e se adapta ao mestre explicador. Ele passa a pensar como o mestre pensa, compreende como o mestre compreende, depende do explicador como o mestre dependeu. Essa criança não será emancipada, mas estará dependente de um mestre explicador para chegar a uma compreensão.
`          Nessa discussão sobre a lógica da explicação e da provocação, outra questão se pode ressaltar entre Bachelard e Rancière: é que apesar de tanto Bachelard como Rancière concordarem ser a explicação um procedimento embrutecedor da inteligência, no entanto, vão se distanciar um do outro quanto ao princípio norteador da lógica da provocação. Para Rancière, a provocação se dá a partir de outro indivíduo  que utiliza o seu poder de ordenar para provocar o aluno a exercitar seu potencial de produção do conhecimento. Isso se entende quando fala da criança que balbucia quando provocada com palmadas (RANCIÈRE, 2004).
Essa concepção de Rancière mantém, ainda, como princípio emancipatório, a ação do homem sobre outro, não mais como um explicador, mas como  provocador pela punição. Um provocador que se utiliza de uma determinada ação de correção para estimular o aluno a ter vontade de querer conhecer. Nessa concepção, Bachelard difere de Rancière quando vê a emancipação do homem a partir das imagens que excita. Para Bachelard, o mundo das imagens dadas é o mundo que provocado pelas hipóteses. Segundo entende, somos lançados no mundo que é o nada humano, que nos faz compreender a existência em nós de um ser da inquietação. Para Bachelard, com a imaginação o mundo não cessa de mudar, as imagens saltam diante de nós e em nós mesmos. Para ele, não são as expressões dadas numa explicação que excitam o homem ou que levam ao devaneio ou a provocação, mas as hipóteses, os temas inventados, uma ação que se coloca longe de uma demonstração erudita (BAHCELARD, 2001).
Bachelard duvida quanto à capacidade da explicação lingüística, justaposta, levar o homem a aprofundar sua condição de criatividade e de conhecimento. Valoriza mais a hipótese, o tema, em vez de uma ordem. Bachelard aposta no tema, na hipótese como meio de provocar o aluno. Uma ação que supera os obstáculos existentes no primeiro conhecimento ou na primeira imagem, um conhecimento que pode estar impregnado de hábitos intelectuais que foram aceitos pela sua utilidade, que entrava o progresso da inteligência. Contra esses obstáculos, é que a emancipação de Bachelard vai ser entendida como uma emancipação que vem pela hipótese, ela excita o homem à compreensão. Uma ação que se processa, segundo Bachelard, quando se oferece resistência a natureza do fenômeno, quando se estabelece ruptura na busca do conhecimento que está para além do conhecido.  Um olhar para dentro, ultrapassando a superfície da primeira imagem do fenômeno. Segundo Bachelard, o espírito deve lutar sempre contra as imagens e contra as metáforas. Torna-se um exercício árduo, que requer esforço e participação do mestre e do aluno. Passa a ser a própria luta do homem livre, na sua condição de emancipado.
Nesse ponto fundamental é que Bachelard difere de Rancière, Rancière compreende a liberdade do homem a partir de outro que possui certa autoridade para ordenar, ou seja, a vontade do que ordena para aquele que não tem vontade de conhecer. O que leva a pensar numa emancipação presa à autoridade de outro que, nesse momento, é visto como superior. Tal condição demonstra a desigualdade, ou seja, o que ordena e o que obedece. Já em Bachelard, o homem está diante do nada humano, ele se coloca contra as imagens, o que o leva a criação das hipóteses contrárias ao conhecimento anterior. Lança-se, desse modo, em oposição às imagens primeiras. Nesta perspectiva o mestre é aquele que leva o aluno a romper com o embrutecimento anterior e supera de forma radical a prática da tradição pedagógica. O que não ocorre com Rancière, pois deixa transparecer certa preocupação quanto à substituição da figura do mestre explicador pela do ordenador, já que ele fica responsável direto pela atividade do aprender. Essa preocupação vai ser revelada quando aborda a questão da atenção; o que parece não ter ficado bem resolvido no pensamento de Rancière, ligando o não aprendizado a falta de atenção. No entanto, não diz como resolvê-la, a não ser por uma disciplina de imposição (RANCIÈRE, 2004) .
Na citação a provocação se dá pela queixa, pela solicitação de uma disciplina imposta de alguma forma ao que ignora o que mostra claramente o problema não resolvido por Rancière, a questão da atenção, ou como fazer o aluno se manter atento ao aprendizado. Já no pensamento de Bachelard a atenção não é imposta pela ordem de outros, ou queixa, mas estimulada pela hipótese, uma hipótese que provoca e desperta o interesse criando a vontade no indivíduo de conhecer para além do consciente. Nesse caso, a explicação não se aplica a um indivíduo bem treinado no exercício de sua imaginação.
Em Bachelard só há lugar para o mestre que provoca pela temática, ou pela hipótese. O mestre é um complicador, é aquele que não explica, nem ordena, mas que provoca com a complicação de um tema, de um problema, contra o que é, em nós e fora de nós, estimulando a faculdade imaginativa a usar seu potencial de deformar, relacionar e combinar (BACHELARD, 2001). Com este procedimento se renuncia a um real imediato ou a uma teoria que se faça comum, intelectualizada, que não permite ir além. Neste instante necessita-se de um complicador que leve a pensar no que foi explicado e defendido como pronto e acabado.
A diferença fundamental entre Bachelard e Rancière, pelo que parece, está na condição de que para Bachelard o homem aprende a pensar quando está diante do mundo nada humano (a imagem) e Rancière quando está diante daquele que ordena (o mestre).
CONCLUSÃO
Revela-se assim, nessa nova compreensão da produção do conhecimento, fora de uma tradição explicadora, uma postura diferente que se propõem, pelo menos, a pensar as condições do aprender e ensinar que emancipe o homem. Um priorizar que visa desenvolver a potencialidade epistemológica, principalmente na liberdade do trabalho da produção científica. Um homem emancipado na sua condição de pensamento e conhecimento, e além de tudo, na sua condição de humano, no pleno exercício de sua humanidade. Um homem desvencilhado de uma tradição que se perpetua pelo acúmulo das informações dadas pelo método da explicação. Conhecimento reproduzido pelo método da transmissão, produto de uma tradição intelectualizada que se torna obstáculo a ser superado a partir de uma nova metodologia da produção do conhecimento, a provocação.
 
BIBLIOGRAFIA
 
BACHELARD, Gaston. A poética do devaneio. Tradução: Antônio de Pádua Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
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_________A poética do espaço. Tradução de Antônio de Pádua Danesi. São Paulo: Martins Fontes,2003.
 
__________A água e os sonhos. Ensaio sobre a imaginação da matéria. Rosemary Costhek Abílio. São Paulo:  Martins Fontes. 1998
 
__________A formação do espírito científico. Tradução: Estela dos Santos Abreu. Rio de Janeiro. Contraponto. 2001
 
__________A epistemologia. Tradução: Fátima Lourenço Godinho e Mario Cármino Oliveira Lisboa. Edições  70, 1971
 
RANCIÈRE, Jacques. O mestre ignorante. Cinco lições sobre   a emancipação intelectual. Tradução: Lílian do Valle. Belo Horizonte: Autêntica, 2004.